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Corona Vírus e Gripe Espanhola de 1918: história que se repete - Waldomiro Manfroi

24 de março de 2020

Em 1918 - Influenza Espanhola, em Porto Alegre.
Excerto do romance A Saúde dos Ventos 2, PÁGINAS: 152-174
Editora BesouroBox, Porto Alegre, 2017.
Waldomiro Manfroi


A literatura registra paisagem, épocas, alimentação, passagens relevantes ou não, o dito pelo não dito, tendências do autor, costumes das pessoas. E pode recontar a história registrada como verdadeira pelo vencedor. 

No dia dezesseis de setembro de 1918, ao circularem insistentes rumores sobre a possível chegada de nova peste na cidade do Rio de Janeiro, alunos da Faculdade Livre de Medicina de Porto Alegre se reuniram para analisar quanto eram verdadeiras tais notícias. 

Depois de muito discutirem sobre o que fazer e como proceder, os acadêmicos Graciano de Azambuja Sá e Darcy Candiota Xavier foram incumbidos de trazer, para a reunião de vinte e oito de setembro, provas se a doença havia chegado ou não ao Rio de Janeiro. E em caso afirmativo, que possibilidades havia da enfermidade chegar ao Rio Grande do Sul e em Porto Alegre. 

Na manhã do dia marcado para a nova reunião, o acadêmico Darcy explicou que abordaria aspectos atinentes à progressão da doença no mundo e no Brasil. A seguir, o colega Graciano mostraria os resultados da investigação que realizaram sobre as doenças mais frequentes atendidas na Portaria da Santa Casa, no decorrer do ano de 1917 e nos meses de janeiro a setembro de 1918.

Feita a explicação, o acadêmico Darcy, em vez de ingressar logo no tema proposto, surpreendeu a plateia com a seguinte expressão. “Entre os atos de heroísmo em cumprimento ao dever pátrio em terras distantes, percalços inimagináveis podem surgir na travessia”.

Vendo que sua voz despertara a devida atenção dos colegas, passou a esclarecer o que pretendia com a frase. Era a maneira que encontrara para prestar sua solidariedade aos familiares dos médicos brasileiros, que faziam parte da comitiva que embarcara em julho de 1918, a fim de incorporarem às forças brasileiras que lutavam ao lado dos aliados da Guerra da Europa. Falava em solidariedade porque, num informe chegado, há dois dias, ao Brasil, o Dr. Nabuco de Gouvêa, chefe da Missão Médica Brasileira, comunicava ao Ministro da Guerra que os tenentes Syllas Teixeira da Silva, José Brasil da Silva Coutinho, Paulo Mello de Andrade e Octávio Gomes Passos tinham falecido em decorrência de uma febre estranha, antes de chegarem à cidade de Marselha, onde já se encontrava acantonada a tropa brasileira. 
 
Novos informes chegados à cidade do Rio de Janeiro davam conta de que o quadro era mais grave do que parecia. Tanto a Esquadra Brasileira quanto a Equipe Médica que se juntariam aos Aliados, assim que chegaram a Dacar, na África, foram atacadas por uma doença que já vinha fazendo milhares de vítimas na Europa. Muitos brasileiros haviam sido contaminados pela moléstia e que dentre eles encontravam-se alguns médicos que partiram de Porto Alegre em julho daquele ano.  Quem e quantos eram as vítimas fatais da comitiva ainda não se sabia. Sabia-se que a estranha enfermidade assolava toda a Europa, se espalhava pelo mundo e já havia vitimado milhares de pessoas.

Sobre a origem da mesma, suspeitava-se que pudesse se tratar de uma das seguintes epidemias: febre amarela, cólera, novo surto da peste bubônica ou febre pneumônica. Devido ao grande poder de contágio da doença, o comandante da Missão Médica, seguindo orientação das Autoridades Sanitárias da Europa, mandara lançar ao mar os corpos dos brasileiros mortos. 

Quem estivera presente à apoteótica despedida dos médicos locais no porto da cidade não podia imaginar que tudo fosse acabar de modo tão nefasto. A fim de rememorar o que fora aquele histórico acontecimento, valeria a pena recuperar o que os jornais publicaram no dia seguinte.

“A bordo do paquete Itajubá partiam para o Rio de Janeiro os médicos rio-grandenses que iam se incorporar na Capital da República à Missão Médica brasileira que embarcava para a Europa. Em toda a cidade havia um ar de festa patriótica. Nos rostos das pessoas que compareceram ao cais via-se estampado um semblante de contentamento misturado a uma profunda melancolia. Expressões que costumam acontecer num ato singular como aquele: uma despedida de volta incerta. Era por demais comovente e chocante porque a emoção emergia de modo sincero do povo, aí representado pelos familiares, amigos, pela mocidade dos Tiros de Governo e das Faculdades de Ensino Superior. Emoção ainda maior surgiu nos atos que se sucederam aos comoventes discursos proferidos, respectivamente, pelo Prof. Mário Totta e pelo Barão de La Vaiseuère, este que brindou o evento com sua taça de champanhe. E as palavras de agradecimento em nome da comitiva, proferidas pelo Dr. Renato Barboza. E seguiram-se as homenagens prestadas pela Liga de Defesa Nacional de São Leopoldo, ofertando à comitiva um buquê de flores. E havia a solene saudação da Cruz Vermelho que também homenageou os médicos que partiam. Como esquecer a comovente homenagem que os alunos do terceiro ano da Faculdade Livre de Medicina prestaram ao ilustre professor de Fisiologia, Dr. Fábio de Barros, quando lhe ofertaram um cartão de prata e uma coroa de louros”. 

E as cenas mais comoventes aconteceram na hora da despedida no trapiche: 

“Esposas e filhos abraçados a seus entes queridos no maior ardor tinham os olhos marejados de lágrima. Além do choro pela emoção da hora, viu-se nos rostos dos retirantes sorrisos e ares sinceros de amor à Pátria, quando viram tremular no mastro da proa o auriverde pendão nacional”.

Quem podia imaginar que essa estranha doença fosse se atravessar no caminho dos nossos heróis brasileiros e lhes causar a morte em terras estranhas? De onde e quando teria surgido esse terrível mal? Era outra pergunta que não parava de circular em toda parte. Certeza ainda não se tinha. Sabia-se apenas que a doença se espalhava rapidamente. 

Antes de responderem, com dados concretos, às perguntas sobre a possível chegada da doença na cidade do Rio de Janeiro e se chegaria a Porto Alegre, precisava discorrer um pouco mais sobre a doença em si, pois pairavam dúvidas quanto à origem da mesma. De forma surpreendente, constatou-se que, desde o início do corrente ano, aconteceram, na Europa, mais óbitos causados por morte natural. Mas, pelo fato de as pessoas estarem debilitadas pela guerra, o achado fora atribuído ao infortúnio das perdas materiais e abalos psicológicos das mesmas. Mas, assim que novo surto causou milhares de mortes em todas as nações europeias, na segunda quinzena de agosto próximo passado, as autoridades médicas entenderam que surgia uma nova e grave doença. 

E, por algum tempo, a pergunta que corria sem resposta era sempre a mesma: seria um novo ataque da peste bubônica? Os noticiários davam conta de que os russos chamavam-na de Febre Siberiana, os espanhóis, de Febre Russa, os franceses de Febre Espanhola. Se sobre o nome havia divergência, nas suas manifestações, o quadro era invariavelmente similar: febre alta, calafrios, mialgias difusas, dor de cabeça severa, confusão mental, fraqueza, dor de garganta, tosse, catarro, chiado no peito, falta de ar e morte. Em alguns casos, havia a presença de diarreia profusa, câimbras abdominais, náuseas e vômitos. Nos casos mais graves ou em pessoas enfraquecidas, a morte podia sobrevir em horas ou poucos dias. 

Sobre a transmissão da doença, as autoridades médicas não tinham mais dúvida: dava-se por contato direto, de uma pessoa enferma para outra. Milhares morriam em casa, nas ruas, nos hospitais públicos e privados. Os médicos não davam conta de atender a todos. Os postos de saúde, os Hospitais de Isolamento, as portarias e as salas de internação estavam sempre repletas de enfermos graves e de mortos. Assim que ocorria a morte de uma pessoa, providenciava-se o enterro imediato. Muitas eram enterradas em covas coletivas. Todas as formas de aglomeração pública em cinemas, teatros e concertos haviam sido suspensas. E muitas igrejas, ao contrário do que acontecera nas pestes do passado, quando lá as pessoas pediam proteção a Deus, agora, muitas delas, por iniciativa de padres ou por determinação de bispos, fechavam suas portas. Então, além dos horrores das batalhas da guerra, na Europa, havia o pavor da morte dentro de casa e nas ruas.

Sobre o que mais interessava aos brasileiros, infelizmente, não tinha boas notícias a transmitir. Ainda que o Diretor Geral de Saúde Pública do Rio de Janeiro continuasse afirmando que a epidemia que lá começara no início de setembro era benigna, as notícias que chegavam a Porto Alegre, transmitidas por parentes que lá residiam, davam conta de que a nova doença se alastrava rapidamente por todos os bairros e já havia causado centenas de mortes. 

 E essa trágica condição chegaria a Porto Alegre?  Era o que o colega Graciano tentaria esclarecer.

Ao assumir a palavra o acadêmico Graciano de Azambuja Sá observou que tentaria responder às perguntas formuladas pelo colega Darcy, baseando-se na veracidade da matemática sobre o que lhes fora possível identificar no levantamento que fizeram na Portaria da Santa Casa. 

Durante os meses de janeiro, fevereiro, março, abril e maio de 1917, foram atendidos 1.921 pacientes de todas as idades. E as doenças que predominaram foram: sífilis, com 121 casos, tuberculose, com 113 casos, gripe, com 66 casos. Desse total, ocorreram 153 falecimentos. Nesse período, ocorreu apenas uma variação na febre tifoide entre as enfermidades predominantes. Enquanto nos meses de janeiro e fevereiro surgiram apenas cinco casos, nos meses de março, abril e maio ingressaram quatro enfermos com diagnóstico de febre tifoide. Como digno de nota, não foi registrado nenhum óbito por gripe. Tomando-se os dados dos meses de junho, julho, agosto e setembro, período de frio mais intenso ou de mudanças bruscas de temperatura, constatou-se que foram atendidos 1.613 pacientes, ocorrendo 145 óbitos, correspondendo a 9%. Quanto às doenças mais frequentes, continuaram sendo a sífilis, a tuberculose e a gripe. A febre tifoide compareceu com apenas 17 casos. Como se podia observar, os dados confirmavam uma das impressões que os médicos sempre tiveram: havia, sim, aumento do número de enfermos com gripe nos meses mais frios, bem como maior número de óbitos. Durante os meses de outubro, novembro e dezembro de 1917, foram atendidos 1.125 pacientes, ocorrendo um total de 85 óbitos, correspondendo a 7,55%. As doenças que predominaram nesse período continuaram as mesmas. Os dados mostravam expressiva redução de pacientes com gripe nos últimos três meses do ano. Como digno de nota, observou-se que não houve nenhum óbito nos pacientes portadores de gripe. 

Para saber se havia diferença entre as doenças predominantes, de modo particular, da gripe e de óbitos, entre os anos de 1917 e 1918, passou-se a analisar as enfermidades que foram atendidas na Portaria da Santa Casa do mês de janeiro a 30 de setembro de 1918. De modo mais objetivo, procurou-se saber se havia aumento dos casos de gripe nos primeiros meses do ano e nos meses de agosto e setembro de 1918. Assim, no mês de janeiro, fevereiro, março, abril e maio, dos 1967 pacientes atendidos, ocorreram 113 óbitos, correspondendo a 5,75%. Sobre a predominância das doenças, constatou-se que continuavam sendo as mesmas: sífilis e tuberculose. Sobre o número de pacientes portadores de gripe, foram identificados 46, perfazendo 2,34%. Então os dados observados de janeiro a maio de 1918, quando comparados com os dados do mesmo período obtidos em 1917, mostravam que não havia diferença entre eles. 

Nos meses de junho e julho de 1918, como aconteceu em 1917, houve um aumento do número de casos de gripe, quando comparados com dados dos cinco primeiros meses do ano. Mais especificamente, trocando em números, dos 423 casos atendidos no mês de junho, 12 foram por gripe, mas sem a ocorrência de morte por essa doença. No mês de julho, num total de 395 pacientes atendidos, houve 19 casos de gripe, com 1 óbito. No mês de agosto, foram atendidos 448 pacientes, sendo 29 por gripe, mas sem ocorrência de morte. Entre o dia primeiro de setembro e vinte e seis, foram atendidos 350 pacientes, sendo que 11 eram portadores de gripe, dos quais 2 faleceram. 

Em conclusão, pelos dados obtidos no local mais procurado pelos enfermos da cidade, Hospital da Santa Casa de Porto Alegre, havia dados que permitiam respostas á segunda pergunta formulada pelo colega Darcy no início da reunião. Podia assegurar que a estranha doença, agora nominada por Influenza Espanhola, não havia chegado a Porto Alegre até a presente data.

Mas o trabalho deles não terminaria aí, pois, para atender ao que fora estabelecido na primeira reunião, eles continuariam acompanhando os doentes da Porta de Entrada da Santa Casa. Se surgissem casos com sintomas compatíveis com Influenza Espanhola, novo encontro seria marcado.

Passadas três semanas do encontro, como continuassem chegando notícias alarmantes sobre a gravidade da epidemia na Europa e no Rio de Janeiro, os acadêmicos de medicina, se reuniram novamente no dia trinta e um de outubro de 1918. Na ocasião, além de prestar novos esclarecimentos sobre a presença ou não da epidemia na Santa Casa, os dois acadêmicos responsáveis pelos estudos tentariam explicar as razões de haver tantas notícias desencontradas na cidade. 

E como acontecera na reunião anterior, o acadêmico Darcy Candiota Xavier, começou abordando as notícias que circulavam na imprensa.

Ainda que as autoridades estaduais publicassem até poucos dias que, “se a doença chegasse ao Rio Grande do Sul, teria forma benigna”, essa afirmativa não ajudava a aplacar o temor que vivia a população de Porto Alegre. E isso se acentuou no dia vinte e oito de setembro, depois que os jornais publicaram a seguinte efeméride. “Por iniciativa dos Drs. Mário Totta, Affonso de Aquino e do corpo médico desta Capital, realizou-se missa pela alma de seus colegas, que haviam falecido em viagem para a França, como membros da Missão Médica Brasileira na Guerra da Europa. Apesar do mau tempo, o vasto espaço da Catedral Metropolitana achava-se repleto de familiares e de cavalheiros pertencentes a diversas classes sociais. Também estavam presentes várias autoridades civis e militares para assistirem à cerimônia que fora celebrada pelo Monsenhor Mariano da Rocha. A seguir, a Senhora Olintha Braga cantou trecho de uma música sacra e as Bandas da Brigada Militar e do 10º Regimento do Exército tocaram Marchas Fúnebres”. 

E no dia trinta de setembro de 1918, outra notícia alarmante fora publicada com o seguinte teor. “Hoje, o Coronel Luiz M de Souza Filho mandou celebrar missa, em ação de graça, na Igreja do Rosário, pelo restabelecimento do médico e Professor da Faculdade Livre de Medicina, Fábio de Barros, acometido pela Influenza Espanhola antes de chegar na França”.   

Assim acontecia porque, mesmo tomando conhecimento que uma doença grave e contagiosa grassava na Europa, no Rio de Janeiro e São Paulo, as autoridades do Estado nada diziam a respeito de possíveis medidas preventivas que deviam ser implementadas na capital do Estado. Pelo contrário,  as autoridades continuavam afirmando que, se a estranha doença chegasse a Porto Alegre, dada as ótimas condições de higiene do Estado e da população, ela teria caráter benigno. 

E novas notícias que chegaram da no dia dois de outubro de 2018, davam conta de que havia falecido o Roberto Mariante, enfermeiro  da tropa brasileira. Informava ainda que os estados de saúde dos Drs. Brazil Vianna e Ciqueira continuavam sendo considerado graves. E que os Drs. Borges da Costa e Basil Sefton, embora estivessem convalescendo, permaneciam ainda muito fracos. 

Do Rio de Janeiro, no dia quatro de outubro chegaram as seguintes informações: “A bordo do Vapor Ceará que viajava para o Norte foram constatados vinte e seis casos de uma doença grave, que lembrava os sintomas da Influenza Espanhola”.  E novas notícias funestas, vindas da Europa, informavam que mais cinco marinheiros brasileiros e um tenente de nome Andrade Neves haviam falecido, em Meaux. Poucos dias depois, do Rio de Janeiro, o Professor Olinto de Oliveira dava conta do agravamento da epidemia em todos os bairros e nas Forças Armadas. Que, face à gravidade do quadro, todos os colégios, as casas de espetáculo, muitas casas comerciais haviam fechado as portas. Até as manobras da Marinha e do Exército haviam sido suspensas, devido ao grande número de soldados doentes. 

Depois que o acadêmico Darcy terminou sua exposição, a plateia passou a ouvir os dados concretos obtidos na Santa Casa, apresentados pelo acadêmico Graciano.

Conforme haviam combinado na reunião do dia vinte e oito de setembro  do corrente ano, trazia agora novos dados que se contrapunham aos que eles apresentaram naquela ocasião. Mesmo que as notícias oficiais continuassem alardeando que a epidemia não chegaria ao Estado, sabia-se que, da cidade de Rio Grande, chegara, no dia nove do mês corrente o seguinte comunicado: “O Inspetor de Saúde do porto da cidade de Rio Grande, Dr. Leonel Gomes Velho, dava conta de que, vindo do Rio de Janeiro, havia chegado naquela cidade o Vapor Itajubá, da Companhia Navegação Costeira, trazendo a bordo 38 tripulantes atacados pela Influenza Espanhola. No dia doze de outubro, um novo comunicado da imprensa daquela cidade dava conta de que mais trinta e dois tripulantes acometidos pela nova doença haviam sido internados no lazareto local. Eram passageiros que chegaram à cidade pelo navio Itaquera que viera do Rio de Janeiro. 

Vencida a quarentena, o vapor Itajubá zarpou de Rio Grande e chegou em Porto Alegre no dia dezessete de outubro. Poucos dias depois os jornais, estarrecidas, as pessoas passaram a ler nos jornais que casos graves de gripe estavam ocorrendo em diferentes pontos da cidade.

Diante do alarmante informe, ele e o colega Darcy decidiram retomar o estudo na Portaria da Santa Casa e também nos Hospitais de Isolamento. Pelos dados levantados das enfermidades e respectiva mortalidade observadas entre os meses de janeiro e setembro de 1918, em nada diferiam em comparação com os dados obtidos durante o ano de 1917. 

E no dia dezenove de outubro de 2018 identificaram uma novidade que ainda não havia sido difundida pelos órgãos da imprensa, oficiais ou independentes. No Isolamento São José, situado na Estrada do Mato Grosso, estavam internados, por ordem do Dr. Flores Soares, chefe do Departamento de Higiene, sete tripulantes que haviam chegado a Porto Alegre pelo vapor Itajubá. Dias depois, ao voltaram a estudar os casos que ingressavam na Portaria da Santa Casa, no dia vinte de outubro, constataram que, ali tinham sido atendidos 35 pacientes que tinham o diagnóstico de Influenza Espanhola, sendo que desses quatro haviam falecido. Só então surgiu nos jornais o primeiro comunicado oficial com o seguinte teor: “A população desta capital não deve se alarmar pelo que se propala sobre a Influenza Espanhola. Se alguns casos suspeitos foram notados, podemos afiançar serem benignos. Por via das dúvidas, vários procedimentos têm sido tomados pela Higiene, a fim de circunscrever o mal que pretende tornar-se epidêmico. Assim procedendo, no sábado, dia dezenove, foram recolhidos vários enfermos aos Hospitais de Isolamento”.  

E no dia vinte e cinco, em outra nota oficial publicada nos jornais, ainda que o governo falasse sobre a existência da epidemia em Porto Alegre, reiterava que a doença era benigna. Como podia se observar, eram jogos de palavras. A epidemia grassava, mas era benigna. Era benigna, mas sérias providências estavam sendo adotadas: desinfecção das malas dos Correios e das casas de pessoas doentes. O governo repetia então o ritual adotado pelas autoridades do Rio de Janeiro, quando a doença lá chegara: era benigna. Só depois da morte de milhares de pessoas, o povo do Rio de Janeiro, conheceu e triste realidade: desde o início do surto, o governo sabia que se tratava de doença muito grave.

Surgiu, finalmente, a opinião oficial do Governo do Estado, publicada na imprensa, contendo, de forma resumida, o seguinte teor: “Ainda que no Rio de Janeiro, o número de mortes fosse tão numeroso que houve a necessidade de recrutar pessoas para prover os enterros, não havia motivo para alarme, visto que, na nossa Capital, a doença só se tornava grave quando havia complicações. Tinham exemplos que justificavam as recomendações. Os funcionários acometidos do mal na Companhia Ganzo, na Força e Luz, na Brigada Militar, na Administração Pública e no Exército, recuperavam-se bem. O Vice-Presidente do Estado no cargo de Secretário do Interior, Dr. Protásio Alves, em nome do Presidente Borges de Medeiros, havia tomada as seguintes providências: os enfermos seriam internados nos Isolamentos São José, situado na Estrada do Mato Grosso, no Isolamento do Bairro São João, situado próximo ao terminal da linha do bonde, no Isolamento do Hospital Cristal da Brigada Militar e no novo isolamento montado para tal fim, situado junto à estação da Viação Férrea de Gravataí. Os viajantes hospedados em hotéis seriam internados num andar superior da Beneficência Portuguesa. Os médicos municipais atenderiam em seus postos de origem, removendo os enfermos que necessitassem de internação para os hospitais de isolamento por meio de ambulâncias que foram adquiridas pelo Estado. Ao mesmo tempo, haviam sido suspensos todos os trabalhos escolares da Capital, das cidades de Pelotas e Rio Grande”.  

Além dessas providências oficiais, professores da Faculdade de Medicina davam conta de uma realidade que já ninguém conseguia disfarçar. A nova epidemia não poupava ninguém, pois desde o dia vinte seis de outubro encontravam-se enfermos pela Influenza Espanhola o Dr. Flores Soares, médico da Diretoria de Higiene do Estado e seus colegas, Luiz Guedes Totta, Sívio Froes e Affonso de Aguiar que, junto com ele, haviam atendido enfermos que chegavam a bordo de navios vindos de Rio Grande. 

Ainda que as notícias oficiais continuassem insistindo que a doença era benigna, as mortes se sucediam em todos os bairros. Face ao verdadeiro pavor que se instalava na cidade e a insegurança dos acadêmicos, o Prof. Eduardo Sarmento Leite da Fonseca, no dia vinte e nove de outubro, convidou para uma reunião de urgência, os representantes das duas últimas séries dos Cursos de Medicina. No encontro seriam definidas as providências sobre a participação da Faculdade no combate à epidemia e no andamento das aulas. Na ocasião, levando em consideração o informe de que, durante o mês de outubro, 35 tiveram o diagnóstico compatível com Influenza Espanhola, na Portaria da Santa Casa, o Diretor decidiu enviar um ofício ao Inspetor Federal de Ensino, Dr. Ricardo Machado, comunicando-lhe que havia determinado a suspensão de todas as aulas dos cursos afeitos à Faculdade Livre de Medicina de Porto Alegre.

Em reunião subsequente, realizada no gabinete do Vice-Presidente do Estado, Dr. Protásio Alves, quando alunos da Faculdade de Medicina estiveram presentes na companhia do Diretor Sarmento Leite e do Inspetor Federal de Ensino, Dr. Ricardo Machado, novas providências governamentais foram anunciadas. Em comum acordo, a cidade foi dividida em zonas de atendimento que ficariam sob a responsabilidade de professores e alunos da Faculdade Livre de Medicina. Deliberaram, também, que a Faculdade Clínica Cirúrgica ficaria à disposição para o atendimento médico e fornecimento gratuito de remédios à população carente, durante as vinte e quatro horas do dia. 

Ao término da reunião, foi enviado um comunicado oficial para os órgãos de imprensa, com o seguinte teor:  “A Influenza Espanhola alastra-se pela cidade, atingindo todas as classes sociais, sem exceções, a despeito das medidas adotadas pelo governo de Borges de Medeiros e pelo Intendente José Montaury. Ainda que os hospitais e os isolamentos se encontrassem lotados de enfermos, felizmente, a doença tem se mostrado de forma benigna na maioria dos casos. Para fazer frente aos compromissos assumidos pelo governo, além das medidas de higiene já adotadas, fora aberto crédito suplementar de quinhentos mil contos de réis para gastos extraordinários. Que a partir daquela data, além dos colégios e das igrejas, os clubes, as casas de cinema e de espetáculos foram recomendadas a suspenderem suas atividades até segunda ordem”. 

Além desse comunicado oficial, o senhor Secretário do Interior informava que, face à notável escassez de alimentos principalmente nas camadas mais pobres da população, o governo criaria, em forma de decreto lei, o Comissariado de Abastecimento e Socorro Alimentícios. Esse grupo de trabalho teria a incumbência de distribui alimentos durante a epidemia, em domicílios onde se tornasse necessária.

Dada a gravidade da situação vigente, além das atividades na Santa Casa e nos Hospitais de Isolamento, ele e o colega Darcy passaram a acompanhar o grupo vigilância dos estudantes de medicina, que circulava à procura de enfermos ou de necessitados. Foi então que viram a crua realidade que se vivia. Devido ao êxodo das famílias, o centro da cidade apresentava aspecto desolador. Nas ruas e nas casa pessoas mortas aguardavam transporte para serem enterradas. A ausência de pessoas na rua, casas de comércio de espetáculos fechadas davam um aspecto de cidade abandonada ou morta. 

− Respondendo à pergunta formulada pelo colega Darcy, podia afirmar que sim, a Influenza Espanhola tinha chegado a Porto Alegre e de forma devastadora – encerrou sua participação o acadêmico Darcy. 

TRATAMENTO E EPÍLOGO.

Ao acompanharem os professores no atendimento de enfermos nos bairros de Porto Alegre, durantes semanas a fio os acadêmicos Graciano e, puderam constatar que o número de mortos crescia diariamente. Com tantas dúvidas a lhes aguçar a consciência decidiram então convidar o Prof. Mário Totta para que participasse da reunião que haviam marcado para a manhã de trinta de novembro de 1918.

Dentre tanto motivos, destacava quatro de modo especial: prestar informações sobre novos dados encontrados na Santa Casa e nos Hospitais de Isolamento; esclarecer dúvidas sobre o tratamento dos enfermos acometidos pela doença; entender o porquê do seu avanço incontrolável e, por fim, quanto tempo ainda duraria o surto.  O convite ao ilustre professor devia-se também ao fato de ele ter publicado na sua coluna do Correio do Povo, no dia trinta de outubro, um longo artigo sobre os sintomas e o tratamento da estranha doença que grassava então na cidade do Rio de Janeiro. Como naquele texto o professor recomendasse o uso de quinino e todos eles estivessem seguindo essa orientação, sem que obtivessem os resultados esperados, precisavam saber se empregavam o medicamento em doses adequadas. E como se tratava de um professor sempre atualizado, além de tirar as dúvidas concernentes ao tratamento, aprenderiam com ele os últimos conceitos sobre as doenças epidêmicas.

Dando continuidade aos trabalhos, o acadêmico Graciano de Azambuja, observou que, antes de passar a palavra aos ilustro convidado, apresentaria um sumário sobre os novos dados que obtiveram a respeito da incidência e o comportamento da nova enfermidade nos locais procurados pelos enfermos. 

Mantendo o mesmo comportamento observado no último informe, dos trezentos e nove enfermos atendidos no mês de novembro na Portaria da Santa Casa, oitenta e seis eram portadores da Influenza Espanhola. Desses, quinze faleceram no local, trinta haviam baixado na Enfermaria de Mulheres e os demais haviam sido transferidos para os Hospitais de Isolamento.

Sobre o que ocorria nos postos avançados e nas casas dos enfermos acometidos pela doença, não tinha dados concretos a fornecer. Mas podia afirmar que, a despeito do uso dos remédios e das observâncias irrestritas de higiene, muitas eram as mortes e as recaídas. Como esses dados ainda não estivessem completos, não podia afirmar quantas pessoas já haviam falecidos em Porto Alegre, mas todos afirmavam que já passavam de mil. 

Assim que o acadêmico Graciano encerrou sua rápida apresentação, o Prof. Mário Totta começou sua conferência com forte sentença, como era de seu hábito: 

“As epidemias são mais graves e mais duradouras nas cidades insalubres”.

Fazia tal observação com intuito de responder à terceira pergunta formulada pelo acadêmico Darcy. A epidemia que grassava tão letal e duradoura em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, ocorria pelas condições insalubres das duas cidades. Mas, para não se alongar em detalhes alhures, abordaria apenas as questões locais, porque sabia que a falta de saneamento de Porto Alegre vinha de longe.

Já no discurso de posse, do Intendente José Montaury de Aguiar Leitão, ocorrida no longínquo ano de 1897, ele fizera uma declaração assaz corajosa. “Na sua administração, faria todo o empenho para fazer em Porto Alegre, o que o Barão Haussmann fizera na cidade de Paris e o Intendente Barata Ribeiro, na cidade do Rio de Janeiro”.  

E, na continuidade de seu discurso detalhou os porquês de seu destaque. 

“Mesmo que soubesse, por contextos advindos do ilustre conselheiro municipal, Dr. Ramiro Barcelos, que assumiria os destinos da capital mais insalubre do país, não era homem que se deixava dominar pelo desânimo. Pelo contrário, tal conotação era um estímulo para que começasse seu projeto administrativo pelo saneamento básico da cidade”. 

Se essas declarações de princípios mereceram, na ocasião, prolongados aplausos de todos os presentes, passados vinte e um anos daquela festiva cerimônia, por mais que algumas medidas tivessem sido tomadas para melhorar o fornecimento de água potável e no tratamento das imundices, a cidade de Porto Alegre deixava muito a desejar nos aspectos higiênicos. Então, era compreensível que, quando surgisse um surto epidêmico de qualquer natureza na cidade, esse se alastrasse logo e se tornasse bem mais grave do que ocorria em cidades que possuíssem um sistema de saneamento condizente com os princípios estipulados pela higiene.

]Sobre o tratamento dos enfermos acometidos pela nova doença, Prof. Mário Totta destacou que, pelo que observara nos postos avançados, nos Hospitais de Isolamento e na Portaria da Santa Casa, todos os colegas seguiam as orientações recomendadas pelos postulados terapêuticos empregados pelos médicos do Rio de Janeiro e da Europa. Isto é, seguiam as medidas higiênicas pertinentes, usavam quinino e aspirina nas doses já conhecidas e consagradas. Os únicos locais que diferiam no tratamento eram os que estavam sob a responsabilidade da Faculdade Clínico-Cirúrgica. Ainda que lá também usassem o quinino nas doses corretas, por seguirem os princípios homeopáticos, lá os não recebiam aspirina para o controle dos sintomas gerais da doença: febre, dores, tremores e cefaleia. Por confiar na Medicina Científica baseada na alopatia, ele não entendia por que os pacientes, acometidos de uma doença tão grave não faziam uso de um medicamento tão benéfico como a aspirina. Quando se tratava de doenças graves não havia o ditame da preferência pessoal deste ou daquele remédio. Falava sempre mais alto o conhecimento da ciência conquistado à duras penas através dos tempos. E sobre os benefícios da aspirina nas doenças febris, não pairavam dúvidas, pois era conhecido dede os tempos de Hipócrates, 360 a.C.. Foi por ser um exímio observador da natureza e das pessoas que esse sábio médico deixara registrado que o chá feito com casca de salgueiro, conhecido também como chorão, diminuía a febre, reduzia as dores e o mal-estar causado por diversas enfermidades. E desde 1897, em forma de remédio com o nome de aspirina, esse componente agora produzido por laboratório, vinha sendo usado no mundo todo para o tratamento das doenças febris e para o alívio de dores reumáticas. E que sintomas apresentavam os enfermos acometidos da Influenza Espanhola? Não predominavam a febre, as dores difusas, a dor de cabeça, os tremores e as dores articulares?  Por que então, se negava o benefício desse poderoso remédio para uma doença tão grave? Essa era uma pergunta que não podia calar. 

Depois de breve pausa, Prof. Mário Totta, elevando o tom da voz, bradou: 

“Ainda bem que sobre o uso do quinino não há divergência entre médicos naturalistas e alopatas.” 

E depois de mais uma breve pausa, esclareceu o porquê de sua veemência. 

Mesmo que o conhecimento sobre o efeito do quinino nas doenças febris não fosse tão antigo quanto os chás de salgueiros, ele vinha sendo usado, desde que espanhóis povoaram o Peru no século XVII. No nosso meio, ele vinha sendo recomendado desde 1890, quando o ilustre médico e cientista de saudosa memória, Dr. Sebastião Leão, num surto de gripe que surgira em Porto Alegre, descreveu os benefícios do medicamento numa página que mantinha no Correio do Povo. Por se tratar de assunto do momento, leria o que o colega publicara na época para se perceber como eram recorrentes os temas relacionados às doenças epidêmicas na cidade. 

“O quinino é um grande remédio no tratamento da “gripe”. Fazendo uso desta medicação, com maior sucesso desde 1890, ultimamente a temos indicado como meio profilático contra a influenza, de acordo com as indicações de nosso prezado Mestre Dr. Dioclécio Pereira. Este ilustre clínico tem inteira confiança no emprego do quinino no tratamento da gripe. E desde muito, baseando-se em observações pessoais, tem aconselhado o uso diário de clorhydrato de quinino durante épocas epidêmicas”. 

Então, baseado nos ditames da Ciência Médica, e pelo que conseguira acompanhar na Santa Casa e nos postos de atendimentos afeitos aos professores e aos alunos da Faculdade Livre de Medicina, podia assegurar que os enfermos acometidos da nova epidemia estavam sendo tratados com o que havia de melhor no mundo. 

A respeito de quanto tempo mais se manteria ativa a terrível doença, não tinha como responder, visto que, desde o último informativo oficial do governo em onze de novembro, os jornais estavam proibidos de publicar qualquer informação sobre o número de pessoas acometidas pelo mal e o número de óbitos. O que podia afirmar no momento, baseava-se em dados de cunho pessoal. Pelo declínio de pessoas acometidas na última semana e pelo fato de algumas casas de espetáculos já abrirem suas portas, tinha a impressão de que a doença desapareceria da cidade dentro de trinta dias. 

Sobre o número de mortos, mesmo que ainda não dispusesse de dados oficiais dos cemitérios, podia garantir que as mortes causadas pela Influenza Espanhola em Porto Alegre, já passavam de mil e quinhentas.

Quando a apresentação de novos conhecimentos relacionados à prevenção e ao tratamento da doença, havia um fato novo a considerar. Muitas famílias que se encontravam debilitadas, fosse pela duração ou recaídas se dirigiam de vapor para a cidade de Rio Grande, a fim de recuperarem as energias num novo hotel que se dedicava a tal fim na Praia do Cassino. Outros se deslocavam para o norte em busca das recém-descobertas águas tépidas e claras da praia de Torres, ainda que o caminho para lá fosse mais difícil e mais demorado. 
 

Academia Rio-grandense de Letras

PATRONOS

CADEIRA 39

Francisco Ricardo

(por Francisco Pereira Rodrigues)

Retrospecto histórico:

Em 1º de dezembro de 1901, é fundada a Academia Rio-Grandense de Letras. Em 10 de abril de 1910, é criada a Academia de Letras do Rio Grande do Sul por egressos da Academia Rio-Grandense de Letras.

Em 20 de outubro de 1932, é fundado o Instituto Rio-Grandense de Letras. Entre os seus componentes figura Dario de Bitencourt, que, apaixonado pela literatura de Francisco Ricardo, resolve homenageá-lo como Patrono de sua Cadeira.

Em 1934, João Maia...

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