TEXTOSRESENHAS

23 razões para ler "Prosa pequena", de Amílcar Bettega - Alessandra Bittencourt Flach

13 de março de 2021

Recentemente, em dezembro de 2020, a Academia Riograndense de Letras concedeu a Amilcar Bettega o troféu Simões Lopes Neto, categoria de Narrativa Curta, pelo livro Prosa Pequena, publicado em 2019 pela editora Zouk.

Amilcar Bettega não é um escritor iniciante. O prêmio recebido é, de fato, um importante reconhecimento. Contudo, o autor já tem uma longa, premiada e bem-sucedida trajetória literária. O livro de contos Deixe o quarto como está (Companhia das Letras) é uma das leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS, fator que também tem contribuído para ampliar a visibilidade de suas obras.

Portanto, destacar as qualidades do autor, de seus livros, reclamar mais trabalhos acadêmicos sobre sua obra, orgulhar-se do sucesso de um escritor gaúcho publicado em inúmeros países, tudo isso, ainda que legítimo, não supera o maior reconhecimento que um escritor pode ter, que é aquilo para o que trabalha: ser lido. Em Prosa pequena, o leitor é referência constante. Com frequência, o leitor é lembrado de que ele é o fim e o propósito do texto. Cabe-nos, então, cumprir nossa função e avançar na leitura, com a certeza de termos feito uma boa escolha.

Não nos enganemos com o título da obra. Prosa pequena parece fazer referência a um conjunto de textos curtos, despretensiosos, que abordam temas triviais, “sem importância”. Longe disso. O próprio autor alerta para a complexidade presente em “narrativas mínimas”, as quais prefere nomear como prosa ao invés de conto, por sua brevidade e, muitas vezes, pela ausência de um fecho.

O que vamos encontrar em Prosa pequena é, na verdade, um universo – amplo, complexo, rico e misterioso como deve ser o universo. Aí parece residir a grande sacada do livro, ou seja, possibilitar ao leitor que experiencie diversas situações, que se encante, que reflita e que sinta a partir do contato com cenas tão comuns, prosaicas, instantâneos da vida, cenas que, muitas vezes, passam despercebidas aos nossos olhos destreinados à poesia do mundo. Tal é a potência que a literatura de Amilcar Bettega nos propicia neste livro, ao “desentranhar a poesia que existe nas coisas”, para usar as palavras de Manuel Bandeira. Por trás da aparente simplicidade que isso possa representar, existe uma árdua tarefa, que somente um escritor com domínio técnico e sensibilidade é capaz de construir.

Prosa pequena é dividido em 23 partes, cada uma delas contendo três narrativas curtas. As histórias foram inicialmente publicadas na revista digital Terra Magazine, em uma coluna quinzenal mantida por Bettega durante seis anos. Ainda que se trate de uma coletânea, com textos de estilos diversos, percebemos uma organização do livro que não é aleatória. Tanto na forma quanto no conteúdo, notam-se algumas aproximações no interior de cada uma das partes, como personagens ou espaços em comum, ou mesmo um estilo de linguagem semelhante. Há certos elementos que percorrem todo o livro, garantindo certa unidade, aspecto pouco usual em um livro de contos.

Em entrevista, certa vez, Amilcar Bettega afirmou: “escrevo para o tipo de leitor que sou: gosto de textos que me botem a trabalhar, que me esquentem os miolos, me façam pensar”. Prosa pequena é desses livros que instigam, que nos fazem desconfiar que pode haver mais coisas do que aquelas que conseguimos identificar em uma primeira leitura. Desse modo, com o aval do autor, esquentemos nossos miolos tentando desvendar alguns enigmas da obra. E como, depois de publicado, o livro passa a pertencer também ao leitor, podemos criar algumas interpretações a partir de nossas leituras e experiências de mundo.

O primeiro aspecto que salta aos olhos é, como já referido, a divisão das 69 narrativas em 23 partes. Qual pode ser o significado desse número na obra? Uma referência indireta ao endereço de Julio Cortázar (uma das maiores influências de Bettega) em Buenos Aires – General José Artigas, 3246 (23 invertido e 46, que é 2x23)?

O título de outra de suas coletâneas de contos, Os lados do círculo, brinca com a forma geométrica utilizada pelo próprio Cortázar para definir o gênero narrativa curta. Nessa mesma conjuntura geométrica e literária, podemos arriscar associar a divisão de Prosa pequena às 23 premissas euclidianas que conceituam as formas geométricas. Arriscando um pouco mais, sabemos que 23º é o ângulo de inclinação do plano da órbita da Terra em torno do Sol.

Em Prosa pequena, o leitor é convidado a observar uma série de situações, que se passam em muitos lugares, desde cidades cosmopolitas ao redor do mundo, como Paris e Barcelona, até o pequeno distrito de Tiarajú, no interior de São Gabriel, distância que engloba, ainda, um número significativo de “cidades desconhecidas”, por onde as personagens passam à procura de alguma coisa, histórias que se aproximam como as linhas de uma forma geométrica, em direções paralelas, opostas ou convergentes.

Mais do que a relação do homem com o lugar em que se encontra, percebemos a importância da relação consigo mesmo. Assim, o olhar desconcertado da criança de 8 oito anos que vê o pai chorar diante da destruição de Sarajevo (“Sarajevo, 1992”) cruza com o olhar do menino de São Gabriel que sente abraçar o pai sempre que se deita no sofá amarelo (“O sofá amarelo”).

Tudo no livro é questão de olhar. É questão de desacostumar o olhar, é olhar sob um ângulo diferente. Contudo, esse exercício implica, sobretudo, olhar para si (“Olhar é se abrir”, como expresso na narrativa “Olhos de metal”). Esse olhar, obviamente, é direcionado pelo narrador. Mesmo diante de histórias bastante diferentes entre si, todas compartilham, sob diferentes vieses, de uma experiência de observação. Mais do que isso: o ato de observar o outro, o fora, o lá, prescinde de um exercício, que é o modo como organizamos e significamos aquilo que vemos e vivemos. O narrador, portanto, conduz o leitor, enquadra a cena, chama a atenção para aquilo que vemos, mas não enxergamos, a ponto de nos oferecer experiências poéticas muito interessantes, a vida como teatro que se encena aos nossos olhos e nos convida a transcender o aqui-e-agora. Ao destacar aspectos cotidianos (como a garçonete que serve a mesa, a senhora que acena da janela, o velho que sorri diante de uma xícara de leite), o mundo existindo para além da janela de onde se vê sempre o mesmo, o narrador se dirige ao leitor, ora tratando-o como “você” (às vezes deixa escapar um “tu”), ora considerando a pluralidade de leitores (“vocês”, “meus caros”).

O tempo todo somos lembrados de que o mundo reinterpretado deixa de ser real e passa a ficção. Somos parte desse processo, compactuamos com o que está sendo narrado, mas também cabe a nós reinterpretar o que nos cerca. “Palavras e paisagens, mas não é isso o mundo?”, lembra o narrador de “Lençóis secando na grama”. Somos convidados a levar a literatura para a vida, para a nossa própria vida: “Você é guiado pelas palavras, mas ao mesmo tempo é você que dá sentido a essas palavras, você é conduzido para dentro de um universo que você próprio engendra” (“Literatura”).

As pequenas prosas, em sua maioria, evidenciam formas diversificadas de organizar o pensamento. A palavra (dita, escrita, lida) é tema de muitas dessas histórias. O trabalho do escritor, o registro, é a materialização do vivido por meio da escrita (é “pensar com as mãos”, como sugere um dos títulos).

A narrativa que abre o livro (“Matar e morrer na literatura, facilidades”) destaca o êxtase que acompanha o escritor em sua capacidade de apreender o mundo no texto, de criar algo que só a ele pertence, que é único, mas ao mesmo tempo tão pouco apreciado, “papéis inúteis” aos olhos de quem não enxerga para além do utilitarismo, da rotina automatizada. A metaficção segue viva em muitas histórias, exaltando os atos aparentemente simples de escrever e de ler. Tomadas em conjunto, as manifestações acerca da escrita e da leitura, por si só, garantem-nos lições importantes: “Viver é uma narrativa. Às vezes sem graça, mas nunca desprezível” (“Poética”). Assim, nada é pequeno ou prosaico a ponto de poder ser ignorado: “Tudo acontece à volta” como no conto “Lençóis secando na grama”, e não podemos deixar de percebê-lo, sob pena de simplesmente deixar de viver.

As personagens raramente têm nomes, poucos são os diálogos. São narrativas de interações interpessoais mínimas, mas de intensas ideias sobre o que se vê ao redor, sobre as impressões que o entorno propicia. Mesmo sem contato, mesmo sem perceber, a presença do outro desperta uma série de reflexões e ações. O narrador organiza e direciona.  A expressão “eu vou junto” (“Ele”) ilustra bem a curiosidade que o narrador tem sobre aquilo que narra. É um convite ao leitor a acompanhá-lo, para explorar mais de perto como as personagens se comportam, o que farão depois, o que sentem.

O leitor não só desfruta das histórias e da perspectiva da narração como também é levado a desvendar os segredos da criação literária, a identificar as artimanhas da composição, o jogo de palavras. Diante de nós, as personagens vão ganhando forma. Não só isso. Somos instados a opinar, testemunhamos a hesitação do narrador, as outras possíveis formas de narrar e, até, compartilhamos algumas hipotéticas impressões que as personagens teriam caso lessem os textos das quais elas próprias são protagonistas.

O livro se encerra com um posfácio do próprio Bettega, intitulado “Duas (ou três) palavrinhas à guisa de fim” (mais uma vez o 2 e o 3 evocando o 23!). Nesse breve relato, a voz do autor endossa a voz dos narradores ao reforçar uma ideia recorrente ao longo do livro: a potência da ficção, que é, segundo o escritor, “uma forma de pensar que não está nem na imagem (no olhar) e nem no texto (no escrever), mas no que pode resultar do choque entre estes dois gestos fundadores”.

Prosa pequena reúne histórias que merecem ser lidas, relidas, refletidas. Histórias que certamente nos desacomodam e nos apresentam opções de ver e significar aquilo que está tão perto de nós.

É pouco provável que tenhamos alguma resposta definitiva sobre o significado do 23 no livro. Talvez não haja nenhuma. Talvez o autor se divirta em provocar o leitor com falsos mistérios, tão ao estilo Jorge Luis Borges. Isso tudo potencializa o valor da obra, instiga ainda mais a leitura e justifica o merecido prêmio recebido pela Academia. Aliás, Prosa pequena, de Amilcar Bettega, venceu outros 23 concorrentes na categoria de Narrativa Curta. 23. Deve ser coincidência.

Alessandra Bittencourt Flach
(alessandrabflach@gmail.com)
Doutora em Literatura Brasileira
Professora

Academia Rio-grandense de Letras

PATRONOS

CADEIRA 22

Juvenal Octaviano Miller

(por Sérgio Augusto Pereira de Borja)

O Engenheiro Major Juvenal Octaviano Miller, patrono da Cadeira n° 22 da Academia Rio-Grandense de Letras, foi Deputado Estadual, Deputado Federal e Vice-Presidente do Estado do Rio Grande do Sul. Nascido em 13/10/1866 na cidade de Rio Grande em 1881 inscreveu-se como voluntário no 17° Batalhão. Em 1882 foi admitido no curso de Engenharia Militar estudando na Escola Militar do Rio Grande do Sul. Lutando pela República fundou o Jornal A DENUNCIA sendo que fazendo propaganda da Abolição e da República, em virtude de ter escrito carta em solidariedade...

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